Fonte: www.fbb.org.br
Os
excluídos, aqueles que não têm vez nem voz, têm sido esquecidos ao longo dos
séculos pelas políticas públicas do Brasil. A exclusão se dá nos planos social,
cultural e econômico, e se manifesta na falta de acesso a condições dignas de
vida, como habitação, saúde, educação e lazer, causando danos irreparáveis,
como a perda da autoestima e da identidade, entre outros. Entre os excluídos
estão: doentes, mendigos, prostitutas, encarcerados, idosos, crianças e
adolescentes de rua, e tantos outros.
Essa
massa excluída clama por uma sociedade democrática, menos discriminadora, mais
igualitária e mais justa, pois anseia integrar-se à vida em sociedade,
assumindo os deveres e desfrutando dos direitos fundamentais de cidadão. O grau
máximo de exclusão é atingido quando o povo internaliza a cultura dominante, o
que ocorre, especialmente, via meios de comunicação. A mídia falseia a
realidade e direciona a vontade política da população. Apenas em alguns poucos
momentos, a cultura popular se manifesta, como no carnaval, na música, na dança
e na religiosidade.
É
necessário criar condições para a transformação dessa realidade, pois faltam
mecanismos para reverter a subalternidade, a tutela e o clientelismo político. Mudanças
consequentes e profundas, porém, apenas acontecem quando há uma ação educativa
que questione os valores estabelecidos e proponha novas possibilidades de
participação social. Para tornar o cidadão apto a compreender a dinâmica da
sociedade e a desenvolver mecanismos de participação, com consciência crítica e
autônoma, é preciso romper com a visão ingênua que se tem das forças políticas
e dos interesses econômicos que sustentam o status quo que se quer
transformar. E é necessário romper com a visão idealista do próprio trabalho
educativo, o que significa que o saber pedagógico deve questionar seus
pressupostos, seus hábitos e tradições.
Fazer
pedagogia hoje é confrontar-se com a diferença, superar o preconceito e
promover a emancipação. A reflexão pedagógica, portanto, deve submeter à
crítica preconceitos culturais e educativos; questionar a relação
homem-sociedade, homem-mulher e homem-meio ambiente; propor novos valores e
modelos antropológicos e culturais, promovendo, com isso, a compreensão, a tolerância,
o respeito e o intercâmbio multicultural. Nesse contexto, ganha relevância o
trabalho do educador social, especialmente por atuar além das iniciativas
convencionais de ensino, o que lhe permite desenvolver, com mais radicalidade,
práticas pedagógicas alternativas, direcionadas à transformação da realidade.
Para essa missão, é preciso coragem, intuição, percepção, compromisso social,
maturidade pedagógica e capacidade de trabalho em grupo.
Reinterpretar
papéis
É difícil
encontrar um educador pronto para participar dessa tarefa desafiadora: um
educador que compreenda a realidade socioeconômica e cultural que o cerca e que
assuma responsabilidades sociais e profissionais como agente de transformação
social. É necessário investir na capacitação desse educador, valorizando nesse
processo a reflexão problematizadora sobre a prática educativa. Ao serem
confrontados com as condições sociais sob questão, os educadores vão
reinterpretando seus papéis, ampliando sistematicamente suas competências, e,
assim, se colocando a serviço de ideias e ideais de uma educação democrática e
libertadora.
Para uma
ação consequente, exige-se do educador social uma visão problematizadora da
realidade que atravesse o saber que ele traz consigo, passe pelo referencial
teórico apreendido e chegue até o cotidiano que se quer transformar. Esse é o
caminho para a formação de um educador emancipado, ético, autônomo e, acima de
tudo, político, que se articule com outros agentes do processo educativo e se
organize coletivamente para a construção permanente de um conhecimento
transformador e para elaboração conjunta de propostas de intervenção.
Para
romper com práticas educativas equivocadas e discriminatórias, convém adotar,
na formação do educador social, uma visão de mundo profunda e crítica, como a
proporcionada pelo pensamento complexo (MORIN, 1998), que não fragmenta a
realidade em relações binárias (mal/bem, oriente/ocidente, certo/errado), mas a
vê com entrelaçamentos inter-relacionados em que cada elemento depende do
outro. A partir desse novo olhar sobre a realidade, que amplia a visão de
mundo, da sociedade e do homem, será possível corrigir rotas, redefinir
caminhos, rever posturas inadequadas e buscar novas formas de trabalhar.
Pela
prática reflexiva e problematizadora, o educador reinterpreta o seu papel como
sujeito histórico, crítico e criativo, passando a se reconhecer como sujeito da
ação educativa, transformador de sua história e da história social. Com essa
visão crítica e transformadora, busca-se entender as causas dos fenômenos e
identificar seus efeitos, para poder resistir criativamente à banalização do
mal, das violências, às explorações sociais que há muito tempo têm, de forma
avassaladora, atingido o mundo inteiro, como guerras, devastação ambiental,
preconceitos religiosos, entre outros.
Junto com
essa postura problematizadora e questionadora que se espera do educador social,
é fundamental uma postura de acolhimento e manifestação de amor e respeito ao
outro, expressada na disponibilidade para o diálogo e na valorização das
relações solidárias. Quando nos sentimos acolhidos, ouvidos, valorizados,
integrados e amados, desenvolvemos a autoestima e nos disponibilizamos para a
aprendizagem. É essa a proposta da chamada Pedagogia da Convivência (JARES,
2006), também conhecida como “pedagogia do coração”, e que está no cerne do
modelo educacional do Programa Integração AABB Comunidade1, objeto de reflexão
de vários artigos neste Eixo do livro.
Pedagogia
da Convivência
A
Pedagogia da Convivência reconhece que são direitos legítimos da criança e do
adolescente o direito à liberdade, à dignidade, à integridade física,
psicológica e moral, à educação, à saúde, à proteção no trabalho, à assistência
social, à cultura, ao lazer, ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de
qualidade e outros direitos sociais, individuais e coletivos diante do Estado e
da sociedade.
A Pedagogia da Convivência se instaura no âmbito das relações
sociais e da experiência concreta do convívio cotidiano dos educadores com as
crianças e adolescentes, pais, formadores, mediadores e instituições. Ela se
baseia, portanto, em determinadas relações sociais e em códigos valorativos
marcados pelo contexto de uma sociedade historicamente constituída.
Compreende-se
assim que, embora os processos de convivência e os conflitos decorrentes sejam
inerentes a todas as formas de organização social, cada comunidade desenvolve,
a partir do contexto social e histórico do qual participa, acordos singulares
de convivência. E esses acordos irão definir em que patamares se darão os
relacionamentos, as interações e as experiências afetivas propostas pela
Pedagogia da Convivência ou pedagogia do coração.
Visibilidade
e inclusão
A negação
do outro, diferente de mim, tem sido considerada, no mundo contemporâneo, um
dos piores fatores geradores de conflitos sociais, dissabores pessoais,
revoltas e agressões, entre outros. A invisibilidade do outro que está ao meu
lado é um dos componentes do processo da exclusão, seja ela causada por
preconceito étnico, cultural, religioso, por discriminação de gênero, opção
sexual ou desigualdade social.
O ser
humano não gosta de se sentir segregado, solitário, abandonado, pois essas
situações causam medos, angústias, esgotamentos físicos e emocionais,
sentimentos de autodesvalorização, impotência, fragilidade e desesperança.
Somos seres integrais, plenos, que desejamos ser cuidados e merecemos ser
reconhecidos em nossa singularidade, exclusividade e potencialidade, para
participar da construção coletiva de possibilidades de uma vida comunitária
saudável e profícua.
Se todos
devemos estar entrelaçados, abraçados e inter-relacionados para viver em
plenitude, então precisamos ver e enxergar, ouvir e escutar, tocar e sentir uns
aos outros. A Pedagogia da Convivência propõe reaprender a utilizar nossos espaços
de interação para melhor compreender o outro e suas intenções. É necessária,
para isso, uma ética do diálogo que estimule o questionamento, com liberdade,
sinceridade e respeito mútuo, sem determinação institucional. Perguntar
mobiliza quem questiona e quem formula a resposta.
O que
define uma cultura é o conteúdo das redes de conversação que a compõe. Os
processos dialógicos acontecem entre os interlocutores, no espaço comum criado
entre eles ou por eles. No caso que estamos analisando, ocorre entre o educador
e o educando, sujeitos do processo de aprendizagem. Olhar, reconhecer e acolher
o outro significa percebê-lo sob várias e diversificadas dimensões expressivas:
na linguagem escrita, falada, na expressão corporal, na produção de imagens e
símbolos, enfim, em todas as possibilidades através das quais possa se
expressar.
Cada
pessoa se identifica com uma linguagem, ou seja, com uma forma de expressão.
Por isso, é importante que o educador social seja motivado e preparado a
experimentar diferentes linguagens, como teatro, música, dança, desenho,
pintura, dobradura, colagem, expressão corporal e outras técnicas.
Em muitos
processos educacionais, se nega, se manipula ou se permite a expressão apenas
da unidimensionalidade do ser. Somos diferentes em relação à ideologia, crença,
gênio, perspectiva, modo de vida, pensamento, modos de entender o mundo, etc.
Na leitura dos diferentes textos expressivos, podemos melhor perceber a
pluralidade da pessoa humana e a sua importância na composição do grupo.
Quando os
seres humanos atingem, pelo convívio, a felicidade solidária compatível com a
dignidade humana, essa felicidade se eterniza na própria essência do viver. A
fonte da renovação e encantamento se situa no próprio desejo de amar e ser
amado, e essa aspiração percorre todos os momentos da vida, por mais fluidos
que sejam, pois o que se busca é manter a relação de confiança e
companheirismo. Esse desejo pulsante é alimentado na Pedagogia da Convivência
ao propor que nos relacionemos de forma benévola com tudo e com todos.
Essa
experiência amorosa do ser humano, concretizada em experiências diversificadas
na vida e particularmente na educação, necessita ser colocada no epicentro
existencial, uma vez que possui a capacidade dinâmica de mover nossos sonhos,
nossas utopias, nossas perspectivas. Quando a pedagogia do coração se instaura
no corpo da proposta político-pedagógica de nossas ações educativas,
concretiza-se a base a partir da qual se poderá construir um outro mundo
possível.
Experiência
amorosa
Todo
processo educativo sistematizado deve ter objetivos especificados e até mesmo
metas estabelecidas. Não podemos, porém, ansiar por resultados imediatos, com
relação a qualquer projeto educacional que proponha questionamentos e mudanças.
Como se trata de um processo de construção coletiva, é preciso reaprender a
aguardar o nascer do dia, o cair da noite, a chegada da primavera, as fases da
lua, o desenvolvimento das ideias e dos ideais.
Os prazos
estabelecidos em um processo sistematizado de ensino e aprendizagem devem ser
observados, mas essa percepção de uma temporalidade que transcende os
calendários administrativos tem que compor as expectativas dos educadores
sociais, uma vez que cada educando tem um ritmo singular de aprendizagem, de
percepção do ciclo da vida e de apreensão do mundo.
Um
projeto de educação libertadora é de difícil aplicação e pode até mesmo gerar
conflitos e resultar em eventuais fracassos. Se defendemos uma educação
democrática e comprometida com valores da justiça, da paz e dos direitos humanos,
temos que ser tolerantes e compreensivos diante dos conflitos, que são
inevitáveis, especialmente em ambientes em que se aceita a diversidade. Viver
em comunidade exige saber conviver consigo mesmo e com os outros. Significa
relacionar-se com a igualdade e também com a diferença.
Convivência
humana pressupõe receber o outro com hospitalidade, reconhecê-lo como
semelhante, aceitá-lo com suas diferenças e respeitá-lo em seu movimento, não
admitindo, em qualquer hipótese, situações segregadoras, excludentes e
discriminatórias. Nesse sentido, o educador social deve privilegiar sempre a
experiência amorosa, pois esta se constitui em uma das forças mais poderosas em
qualquer relação social, seja ela individual, institucional ou grupal, e será
fundamental no processo educativo.
O
Programa Integração AABB Comunidade procura atuar dentro dos pressupostos aqui
discutidos. E investe na formação dos educadores sociais que participam do
programa para que os princípios e concepções afetivas façam parte de sua ação
pedagógica, como um caminho para a construção de uma nova geração de
protagonistas cidadãos do Brasil. E assim, de sonho em sonho, vamos construindo
a realidade que almejamos: que é uma sociedade justa, igualitária e afetuosa.
* Maria
Stela Santos Graciani é Doutora em Educação pela USP; Profª Titular da Faculdade de Educação da
PUC-SP; Coordenadora do Curso de Pedagogia e do Núcleo de Trabalhos
Comunitários (NTC); Pesquisadora da área da Infância e Adolescência e membro do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); Pedagoga
e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Participou como especialista
convidada do Papo de Mãe sobre Inclusão Social, exibido em 03.06.2012.
Referências
bibliográficas
GRACIANI,
Maria Stela Santos. Pedagogia social. São Paulo: Cortez, 2001.
JARES,
Xesus R. Pedagogia de la convivencia. Madrid: Editora Grão, 2006.
MELLO,
Thiago de. Faz escuro, mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965.
MORIN, Edgar. Introdução ao
pensamento complexo. Paris: Flamarion, 1998.
Fonte: Fundação Banco do Brasil