Substância encontrada na maconha é capaz de diminuir as convulsões e melhorar a qualidade de vida. Conheça o drama que entrelaça saúde, direito, preconceito e perseverança e leia o relato emocionante de um médico que tenta curar seu próprio filho
Por Maria Clara Vieira - Revista Crescer
Foto: Revista Crescer |
Parece filme de ficção científica, mas é real. Dentro da seringa repousa uma substância com poderes admiráveis: ela alivia o sofrimento de crianças que enfrentam dezenas de crises epiléticas diariamente. Capaz de diminuir as convulsões, o produto garante um futuro menos incerto e mais esperançoso. Só que não é permitido no Brasil. Trata-se do canabidiol (ou CBD), uma das 400 substâncias presentes na Cannabis sativa, a PLANTA da maconha.
Antes de tudo, é preciso esclarecer que, sozinho, o canabidiol não tem efeitos psicoativos, ou seja, não causa o “barato” pelo qual a maconha é conhecida. Ele também não se encontra listado na Convenção de Substâncias Psicotrópicas da ONU. O uso do produto com fins medicinais é permitido em dezenas de países, entre eles Alemanha, Uruguai, Israel, Espanha, Holanda e em 22 estados norte-americanos. No Brasil, porém, o CBD ainda consta na lista de proscritos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – em outras palavras, não pode ser comercializado nem consumido.
O assunto começou a ganhar força e notoriedade em maio, quando a Anvisa se dipôs a rever a permanência do CBD na lista de proscritos. Até então, parecia que o produto seria liberado no fim daquele mês, mas, no dia 29, Jaime Oliveira, um dos diretores da agência com poder de voto, pediu mais tempo para analisar o processo, de modo que a decisão final foi adiada. A previsão é que a votação seja retomada em agosto. A Anvisa não quis dar entrevista. Foi por meio de liminar concedida pela Justiça (a única até agora) que afamília de Anny, 6 anos, obteve o direito de importar o medicamento. “O canabidiol ajuda imensamente no controle da epilepsia. Mudou a vida da minha filha. Ela tinha 80 crises por semana e, agora, tem três por mês. Eu não quero a legalização da maconha. Estamos falando de maconha medicinal, não do uso recreativo”, diz a paisagista Katiele Fischer, mãe de Anny. A menina é portadora da síndrome de Rett, que provoca desordens neurológicas (como crises epiléticas) e compromete as funções motora e intelectual.
O Ministério da Saúde não tem dados de quantas crianças poderiam ser beneficiadas com o canabidiol. Segundo a ONU, 50 milhões de pessoas sofrem com epilepsia em todo o mundo. Grande parte consegue amenizar a doença com medicamentos regulares, porém, cerca de 15 milhões continuam tendo crises frequentes. Para essas pessoas, o canabidiol parece ser uma alternativa. O menino Benício, 6 anos, filho do médico oncologista Leandro Ramires, é uma delas.
O especialista não tem dúvidas dos benefícios que o CBD trouxe ao filho, que é portador da síndrome de Dravet e sofria muitas crises antes de usar o produto – diante da urgência, ele nem tentou a liminar ou outro mecanismo e importou a substância.
Outra forma de adquirir o produto legalmente é com uma autorização especial da Anvisa. Mas, para isso, é preciso que algum médico ateste a necessidade de usar o CBD – e a dificuldade está justamente aí. “A Maria Fernanda tem 2 anos e, desde os 6 meses, tinha convulsões fortes diariamente. Eram de dez a 20 crises seguidas por dia. Nunca conseguimos controlar, mesmo com medicamentos”, conta a mãe, a dona de casa Aline Barbosa.
Os pais da menina, que não senta e é alimentada por sonda, ainda não têm o diagnóstico fechado da doença, mas ouviram falar do CBD e queriam importá-lo. Tentaram conseguir receita com os médicos da filha, e todos se recusaram a prescrevê-lo, alegando desconhecimento da ação da substância. Então, recorreram à importação ilegal. “Alguém de fora dopaís envia o CBD para a gente escondido dentro de brinquedos, por exemplo. Não é nocivo, não é uma droga. Em pouco tempo, minha filha apresentou uma melhora impressionante”, conta o pai, o técnico em automação comercial Marcelo Fonseca. Em 20 dias de uso do produto, Maria Fernanda teve apenas oito crises, contra 241 no mês anterior, quando ainda não tomava o medicamento. Além disso, ela passou a firmar a cabeça por alguns instantes, começou a emitir sons e a sorrir.
A Anvisa revelou à CRESCER que, até agora, apenas 28 famílias entraram com pedido de importação do canabidiol. Desses, duas eram decisões judiciais sobre as quais não cabia análise do órgão, e 11 foram liberados.
Apelo de mãe
“Dói no fundo da alma quando um médico diz que não tem mais o que fazer. Mas tem, sim. É possível sair da zona de conforto e ir atrás das coisas novas que estão aparecendo. O canabidiol não é a cura da síndrome da Anny, mas ajuda a controlar a epilepsia, e isso faz a gente viver mais tranquilo. É uma luz no fim do túnel”, desabafa Katiele Bortoli.
Os pais ouvidos nesta reportagem fazem um apelo para que a Anvisa libere o CBD. Eles dizem que compram a substênacia por um valor muito alto e ainda correm o risco de o pacote ficar retido. A seringa com dez gramas custa, em média, US$ 450 e dura três meses. Aline conta que uma advogada disse que ela poderia ser presa como traficante internacional, mas nem isso a deixou com medo. “O canabidiol não é droga. A vida da minha filha vale o risco.”
A postura dos órgãos de medicina
Diante do impasse nacional, as entidades que representam oficialmente órgãos médicos ainda divergem quanto a defender claramente uma opinião. O conselho Federal de Medicina
(CFM) divulgou em nota que “não se deve confundir o uso médico de canabinoides com o produto in natura para uso fumado ou ingerido, por não ter valor científico ou terapêutico”.
A entidade defende a pesquisa para fins medicinais e se manifesta contrária à liberação do uso recreativo. Por outro lado, a Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNi) considera que, “neste momento, não há elementos científicos que permitam recomendar o uso do canabidiol para
o tratamento das diversas formas de epilepsia na infância”, já que não há pesquisas que incluam resultados a longo prazo.
A Sociedade Brasileira de Pediatria disse à CRESCER que não tem uma posição oficial sobre o assunto. Até o fechamento desta edição, a Associação Brasileira de Psiquiatria não havia se manifestado.
As interpretações da lei
No Brasil, pela Lei 11.343, é crime importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar e fornecer drogas sem autorização. A pena prevista é de reclusão de cinco a 15 anos. Como o CBD está na lista de proscritos da Anvisa, ele é considerado uma droga e, portanto, os pais que importam o produto cometem crime.
“Na interpretação meramente legalista, os pais estão traficando. Mas a lei comporta interpretações. Não se deve analisar apenas a letra fria da lei, e sim examinar os casos concretos”, afirma Maurides de Melo Ribeiro, advogado e membro da Comissão de Política Nacional de Drogas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ele explica que, em casos como os dessas famílias, seria de extrema insensibilidade uma condenação, tendo em vista o caráter excepcional da situação. “O ideal é que se consiga comprar de forma lícita, mas, se a importação não é permitida, é lógico que os pais farão o que for preciso para propiciar a melhora do filho. Aquilo que é proibido vai automaticamente para a clandestinidade. É ilusão achar que assim estão controlando alguma coisa. O controle se faz pela regulação.”
Dica: Reveja o Papo de Mãe sobre Epilepsia.
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