Fonte: escuta.com.br
Falar sobre limites em nossa sociedade é tema bastante delicado. Com freqüência, pais procuram
psicólogos, médicos ou a escola para perguntar: como coloco limites nos meus filhos? Ou melhor, como faço para que eles respeitem os limites que coloco?
Criança fazendo birra, jogando-se no chão do shopping e deixando os pais enrubescer de vergonha e raiva é fenômeno da atualidade que nos faz perguntar: o que houve com aquele simples olhar ou aquela apertadinha no braço que acompanhado da famosa frase: “a gente conversa em casa”, nos fazia calar? Que cenas são essas que revelam crianças tão poderosas diante de adultos praticamente indefesos?
Se pensarmos no tipo de reação de quem assiste a essas cenas, podemos refletir sobre importantes
aspectos deste tema. As reações costumam ser de dois tipos: “Que absurdo, que criança mal educada e esse pai não faz nada”. Ou então: “Coitada, porque será que ela chora assim? Vai saber o que esses pais fazem com a pobrezinha?”. Ou seja, é como se aos adultos só coubessem duas alternativas: ou são vistos como permissivos e é por isso que a criança é “mal educada” ou maus e violentos e é esta a causa do
sofrimento da criança. Implicitamente, atribui-se como causa da atitude da criança uma incompetência ou inadequação dos pais. Mesmo na mídia ou em alguns livros sobre o tema, a idéia de que pais são relapsos, preguiçosos e permissivos aparece com freqüência.
Do nosso ponto de vista, essa abordagem não tem contribuído muito para auxiliar os pais que,
verdadeiramente, se sentem perdidos e angustiados em relação à questão dos limites e sofrem
cotidianamente as conseqüências desta angústia. De nada adianta dizer: seus filhos são mal educados e a culpa é de vocês! É preciso subsídios para refletir porque na atualidade está tão difícil educar e entender que essa dificuldade faz parte de um âmbito cultural e social maior, no qual estamos todos implicados. A partir disso, podemos sair de um lugar passivo e assumir um lugar potente, atento e crítico em relação àquilo que determina nosso modo de ter, ser e viver nos dias atuais.
Vamos começar pensando em alguns paradigmas que regem as idéias sobre educação: a primeira,
recorrente, é a de que não se deve bater em crianças. Isso é novo. Antigamente, nem se questionava se os pais deveriam ou não repreender fisicamente uma criança. Isso era direito do adulto.
Essa medida antiga que, em uma época, ganhou o apelido de “palmadas pedagógicas”, apresenta na prática alguns problemas que comprometem a sua eficácia e freqüentemente nos coloca em posição contraditória. Um exemplo: “Você não pode bater no seu irmãozinho, pois ele é menor que você. Para te ensinar isso,
eu que sou maior que você, vou te bater!” É uma mensagem paradoxal. No dia seguinte, a criança bate no amigo porque queria a bola que ele estava usando e dizemos para ela: “Isso não se faz! Por que você não pediu a bola para ele?”. E a criança pode
nos responder: “Eu pedi, mas ele não me deu, então eu bati e consegui o que queria!”
Ora, isso não seria muito diferente da técnica utilizada pelos pais e, como tudo que é vivido, ficou pela
criança, aprendido. Nesta situação poderíamos dizer à criança: “Pois é, meu filho, ele não lhe deu a bola,
porque muitas vezes na vida, não temos aquilo que desejamos”.Nestas palavras está uma idéia central a partir da qual discutiremos o tema mais adiante: “desejos nem sempre são satisfeitos”
Um outro paradigma da educação nos dias de hoje é que a criança é um sujeito e deve ser tratada como tal. Isto é, devemos falar com a criança, ouvi-la e delegar a ela um lugar onde seu desejo também seja respeitado na família. Por fim, vale citar também outra idéia amplamente difundida há tempos atrás em virtude de uma interpretação equivocada da teoria psicanalítica: reprimir traumatiza.
Em suma: não se pode bater, reprimir e ainda deve-se perguntar à criança o que ela deseja. Simplificando
desta maneira, não é de estranhar-se que os adultos tenham ficado impotentes diante de crianças tirânicas. Propomos pensar essas concepções sobre educação à luz do que foi anteriormente mencionado: a questão dos limites está diretamente ligada à cultura em que estamos inseridos. E podemos nos perguntar o quanto a nossa capacidade de dizer e sustentar um “não” para um filho pode estar obstruída pela maneira como
somos e vivemos em sociedade.
Diversos autores como psicanalistas e cientistas sociais referem-se aos nossos tempos como “a era da
individualidade” ou “a cultura do narcisismo”; falam do “declínio da figura paterna”, da “sociedade do
espetáculo”, etc. Essas são idéias fundamentais para pensarmos a dupla: “pais impotentes-filhos tirânicos” que tanto se discute atualmente.
Para falar da cultura do narcisismo é útil uma breve exposição da teoria freudiana para entendermos como o conceito de narcisismo se articula com o desenvolvimento da criança. O termo narcisismo tem para a psicanálise a mesma conotação do mito grego, no qual um indivíduo se via refletido nas águas de um rio e acabava capturado pela própria imagem.
Nos seus estudos sobre o luto e a melancolia, Freud apresenta importantes idéias para entendermos a noção
de narcisismo ou investimento narcísico. Em linhas gerais, estabelece que alguém que está em processo de
luto pela perda de uma pessoa querida se vê diante da tarefa de redirecionar o afeto antes dirigido à esta
para outro lugar. Em um primeiro momento do luto, é necessário que este afeto seja redirecionado ao próprio
eu. Isso é importante para que o indivíduo possa cuidar de sua dor e tentar, de alguma maneira, elaborar
a perda vivida. Isso significaria aceitá-la, guardando dentro de si uma imagem do ente perdido para então
poder reinvestir ou redirecionar a mesma energia para outra pessoa ou projeto pessoal, algo externo ao eu.
Nos indivíduos melancólicos, no entanto, Freud observou que essa segunda etapa, a de reinvestir em algo
externo, não acontecia. Deste modo, toda a energia que antes era voltada para fora, permanecia investida no
próprio eu.
Pois bem, o que isso tem a ver com nossas crianças? Freud vai dizer que começamos a vida em um estado semelhante ao do melancólico, ou seja, todo o nosso afeto e energia estão voltados ao nosso próprio eu, o que denomina narcisismo primário.
Para o bebê o mundo é feito dele e da extensão dele mesmo: seio, mãe, adultos, brinquedos, são sentidos
como parte do próprio eu. Freud cria uma expressão interessante para descrever este fenômeno: “sua
majestade, o bebê”. Na relação com os adultos o bebê passa a ser toda a fonte de preocupação e
investimento, além da projeção de ideais de perfeição dos pais. É como se um bebê despertasse em nós
a esperança de que desta vez seremos através dele, perfeitos. Passamos horas e horas contando sobre o nosso bebê: como ele riu, chorou, do que gosta de brincar, o que gosta de comer... como se fosse o único a fazer isso tudo, ou pelo menos, o mais especial.
É nesse sentido que Freud vai dizer que o filho reaviva nos pais o próprio narcisismo primário perdido
na infância. Este narcisismo é fundamental, já que o bebê encontra-se em um nível de dependência tão
absoluto que precisa deste tipo de investimento, no qual é “tudo para alguém” para que possa sobreviver e aos poucos, ir tendo uma noção de existir no mundo. Nesta dinâmica, mãe e criança vivem a ilusão de serem juntos, um par de perfeição e completude.
Gradativamente, essa ilusão de perfeição e completude se rompe, pois acontecerão falhas do ambiente que colocam o bebê em contato com a falta. Um seio ou uma mamadeira que demora a chegar, um desconforto físico causado pelo mundo externo ou pelo próprio corpo são eventos que fazem com que o bebê viva
rupturas nas experiências de satisfação imediata de suas necessidades. Essas rupturas são vivências em que o narcisismo do bebê é abalado. Ele vai sentir que para as suas necessidade serem atendidas é preciso a presença/interferência de um outro, ou seja, será preciso investir também em algo fora de si mesmo para obter a completude desejada. Em seguida também vai entender que o adulto espera algo dele, que será amado mediante certas condições, como ser educado, bonzinho, etc.
É nessa presença inevitável do outro que o indivíduo é convocado a sair de seu lugar narcísico e fazer parte
de algo que é da ordem do coletivo, do universal e do simbólico; de uma lei a qual todos estão submetidos.
Isto é, será preciso renunciar ao principio do prazer (eu quero ser satisfeito AGORA!) para ser aceito na
cultura.
Deste estado do bebê que é chamado de narcisismo primário, temos resquícios importantes, aquilo que
no senso comum chamamos de vaidade ou auto-estima. Uma boa dose de narcisismo é fundamental para
todos os tipos de investimento que precisamos fazer em nós mesmos. Mas esse resquício é muito diferente do que se referem os autores quando falam em “era do individualismo” ou “cultura do narcisismo”, condição na qual estaríamos aprisionados no narcisismo primário, reivindicando permanentemente o retorno do lugar de “sua majestade o bebê”, capturados pela imagem de seres perfeitos, incondicionalmente amados e
negando a presença do outro.
Se pensarmos esse outro como algo que nos remete à idéia de que “não posso tudo, não tenho tudo e
não sou tudo”, podemos observar como essas premissas são postas em cheque a todo momento em
nossa cultura. A internet nos coloca em um lugar que permite uma espécie de onipresença e onisciência,
no qual vencemos os limites do tempo e do espaço e ainda podemos assumir múltiplas identidades. As
cirurgias plásticas e o botox, por exemplo, também nos prometem “fazer o tempo parar” e escolher a nossa imagem, geralmente associada a algum padrão de perfeição. A indústria farmacológica dos antidepressivos nos afasta de qualquer desconforto emocional ou psíquico; não podemos viver mais nenhuma angústia,
depressão, tristeza ou sofrimento.
Ora, em um mundo de tantas possibilidades, é curioso notar que ao invés de indivíduos cada vez mais
felizes, encontramos pessoas cada vez mais deprimidas, com sensações de vazio e de desvalorização
da própria vida. Nossa cultura promete o prazer constante (como aquele vivido inicialmente pelo bebê),
caracterizado pela ausência de sofrimento, pela ilusão de perfeição e a negação da existência do outro.
Promete o paraíso e oferece o vazio, a ausência de sentido. Vazio, porque ao contrário do que se imagina,
o princípio do prazer nos aprisiona em uma condição frágil, na qual qualquer frustração é insuportável
e qualquer conquista perde o sentido. Para desejar e usufruir a realização de um desejo, é preciso poder
sentir que existem faltas.
Estamos assombrados pelo ideal de perfeição narcísico: precisamos ser excelentes profissionais,
maravilhosos pais, bonitos, magros, cultos, engajados socialmente, espiritualizados e nunca, jamais envelhecermos! Freud dizia que uma criança nunca se contenta com menos do que tudo. Parece que nos dias de hoje, nós, adultos, também não.
Uma das maiores dificuldades em colocarmos limites às crianças está no fato de sermos nós “a majestade
o bebê”. Freqüentemente ouvimos adultos dizerem que querem ser o “melhor amigo” de seus filhos. Ocorre
que ser pais implica em frustrar os filhos e renunciar por instantes da posição de pai “legal” e amado. Disto
também deriva a constante tentativa de educar exclusivamente em nome do amor e do afeto: “Se você fizer
isso, a mamãe vai ficar triste com você”. Ninguém mais se autoriza a dizer: “Não, porque não!” Porque as
coisas são assim, porque estamos todos submetidos a uma lei maior, uma tradição, porque há um código
social, etc. Qualquer noção de coletividade perdeu espaço para o prazer imediato e o individualismo.
Neste contexto, veremos que para estabelecer limites para as crianças, é preciso antes de mais nada,
refletir como temos lidado com os nossos próprios limites e pensarmos que, se fizéssemos as pazes com
as impossibilidades da vida, talvez pudéssemos ter crianças menos tirânicas e adultos menos impotentes.
Bibliografia
BIRMAN, Joel. Mal estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia in Obras Completas, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,1996.
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução in Obras Completas, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,1996.
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MARIN, Isabel da Silva Khan. Violências. São Paulo: Escuta / Fapesp, 2002.
MILLAN, Marília Pereira Bueno. Tempo e subjetividade no mundo contemporâneo - Ressonâncias na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do psicólogo, 200
Fonte: http://www.escuta.com.br/Limite_cultura_do_narcisismo.pdf
*Clarissa de Toledo Temer é psicóloga. Participou como especialista convidada do Papo de Mãe sobre " Meu filho manda em mim" exibido em 21.07.2013.
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