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Na TV Brasil

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Entrevista com o Dr. Luiz Alcides Manreza*

Olá! 
Esta semana estamos falando sobre Transplante. Por isto, segue para vocês, com exclusividade, a íntegra da entrevista de Rosângela Santos feita com o neurocirurgião Dr. Luiz Alcides Manreza*, autor do conceito de morte encefálica no Brasil.

Dr. Luiz Alcides Manreza

Rosangela: Dr. Manreza, o que é a morte encefálica?
Dr. Manreza: A morte encefálica é o que nós hoje aceitamos como equivalente a morte clínica; é uma perda total irreversível de toda a função do encéfalo em si, ou seja, é um cérebro morto num organismo vivo. Então, o encéfalo todo morreu de uma maneira irreversível. E, a despeito de algumas vezes, ainda, o restante do corpo, do organismo estar perfundido, o coração batendo, as artérias pulsando, evidentemente.
Rosangela: Para as famílias, numa hora dessas, é muito difícil aceitar a morte encefálica. Com a morte encefálica, a pessoa pode oferecer os órgãos para transplante?
Dr. Manreza: Esta é uma das possibilidades, principalmente para órgãos que necessitam de órgãos hígidos e perfundidos, diferentemente de outros transplantes, como de ossos e de córnea, que não necessitam dessa condição. Mas também é um critério de viabilidade, no fim, de se deixar de investir em pacientes que estão em UTI, muitas vezes ocupando leitos extremamente caros e de um paciente já declarado como inviável. Então, a morte encefálica ela tem o valor de morte clínica. Então, todas as tentativas de tratamento devem ser cessadas e suspensas.
Rosangela: Quando é diagnosticada a morte encefálica não há mais volta?
Dr. Manreza: Não há a possibilidade. Há um conceito de inviabilidade, quer dizer, é um diagnóstico definitivo e equivale a de morte clínica.
Rosangela: Mesmo que o coração esteja batendo?
Dr. Manreza: Mesmo que o coração esteja batendo, ela exerce uma condição que ocorre no diagnóstico de morte encefálica.
Rosangela: Agora para o leigo, clinicamente, quando é que a pessoa é considerada morta, quando é que essa morte encefálica é diagnosticada?
Dr. Manreza: O diagnóstico de morte encefálica é como qualquer diagnóstico em Medicina, só que ele é um diagnóstico que se tem um cuidado, evidentemente, de ser bastante exato, não ter erro. Por isso mesmo, são necessários, primeiro, um tempo de observação. Existe um tempo de observação mínima de seis horas; não pode ser dada antes desse período de observação, por mais evidente que seja o quadro. Segundo, esse diagnóstico é feito, necessariamente, por dois médicos, inclusive, que não estejam relacionados aos grupos transplantadores ou nenhum outro tipo de vínculo. Terceiro, esse diagnóstico ainda é respaldado por exame subsidiário com imagem gráfica obrigatória. É um exame, seja ele qual for, que mostra inequivocamente que este cérebro não tem perfusão cerebral, ou seja, não tem circulação cerebral, que é uma condição da morte encefálica . O cérebro não tem atividade metabólica, as células realmente não estão em atividade, também não tem atividade elétrica cerebral através dos exames, como o eletroencefalograma. Então, esses exames subsidiários acabam respaldando e dando uma força ao diagnóstico, em que pese mais da metade dos países não o exijam. Mas no Brasil, nós ainda mantivemos essa necessidade de um exame subsidiário, que dá um conforto maior, inclusive, não só para os médicos que fazem o diagnóstico, como para a própria família, que se sente um pouco mais segura para não haver dúvidas, de forma que é impossível haver um erro nesse aspecto. Então, seriam dois médicos e mais um terceiro médico que vai fazer esse exame subsidiário.
Rosangela: O senhor foi o relator do conceito de morte encefálica para a realização de transplantes junto ao Conselho Federal de Medicina. Isso aconteceu na década de 90?
Dr. Manreza: Exatamente. Foi exatamente em 1990 que nós apresentamos o primeiro critério de morte encefálica, que na época foi respaldada pela nossa Escola. Nós fomos pioneiros aqui no Hospital das Clínicas, no transplante a partir de cadáver, que foi exatamente em 1968. E lembro bem, eu estava muito envolvido porque eu era interno nesse ano e acompanhei aquela noite toda o professor Zerbini e o professor Campos Freire fazendo o primeiro transplante de coração e de rim da América Latina. E na época, então, representamos nosso conceito, que tinha sido feito na nossa clínica em 83 e junto com a Academia Brasileira de Neurologia e Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. Então houve um consenso entre nós e eu levei esse conceito. E depois, ele foi acrescentado às crianças com menos de 2 anos em1997. Isso tudo, evidentemente, respaldado por uma lei que dizia que todo ato médico será regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina. Então, a partir desse momento, passou a ter força de lei.
Rosangela: Quer dizer, então desde 90 que os médicos são respaldados pelo Conselho Federal de Medicina para aplicar esse conceito de morte encefálica?
Dr. Manreza: Exatamente.
Rosangela: A morte encefálica é igual à morte clínica?
Dr. Manreza: Ela tem valor de morte clínica.
Rosangela: Isso para transplante?
Dr. Manreza: Não, não, isso para tudo. Na realidade, se eu tenho um paciente na UTI, que eu faço todo o possível... Porque veja bem, a morte é meu insucesso. Eu sou neurocirurgião. Na realidade, eu estou envolvido nisso porque durante todos esse anos exerci a função de diretor do Serviço de Emergência do Hospital das Clínicas. Então é praticamente uma obrigação nossa . A morte é meu insucesso. É nosso insucesso, mas, às vezes, um paciente que você despendeu vários esforços, esse paciente está em morte. Então, não tem sentido eu continuar traumatizando a família, onerando, às vezes, a família, por uma luta absolutamente desnecessária.
Rosangela: Qual a importância do diagnóstico de morte encefálica para a realização de transplantes?
Dr. Manreza: Na maior parte dos transplantes, há uma necessidade de utilizar órgãos que estejam perfundidos e hígidos. Perfundidos é no sentido de ter uma circulação sanguínea, caso contrário, esse órgão fica inviabilizado e a possibilidade de rejeição e de não adaptação aumenta muito. Alguns órgãos frios, como o rim, às vezes, têm um tempo em que podem ser até utilizados depois da parada circulatória, mas esse tempo é muito pequeno. O ideal é que ele seja retirado e utilizado ainda perfundido, com circulação. Isso na maior parte dos transplantes. Existem alguns transplantes em que não há essa necessidade como é o caso das córneas, pele, osso, então já são transplantes que não necessitam de perfusão.
Rosangela: Essa decisão do Conselho Federal de Medicina foi fundamental para a utilização desses órgãos em transplantes?
Dr. Manreza: Sem sombra de dúvida. Mas eu lembro que na época em que foi feito, o número de transplantes era extremamente reduzido. O chamamento maior foi em função de UTI nesse país todo. Então, havia uma necessidade, porque já estavam começando as UTIs, estavam alastrando por todo o país e investindo cada vez mais em leitos graves, em doentes graves. Então, precisava haver um critério para suspender o tratamento, critérios de viabilidade. Esses critérios já vêm desde 1958, lá dos franceses. Hoje, nós já temos, então, o conceito de morte encefálica, que é quando você para de investir nesse processo e suspende, quando você está autorizado a suspender a circulação. Por exemplo, eu posso perfeitamente ter um paciente em morte encefálica não-doador, por motivos vários, ele não serve como doador: idade avançada, doenças como AIDS e tudo o que inviabilizam a utilização de qualquer órgão desse paciente. Então, simplesmente são suspensos. Nós estamos autorizados a parar os aparelhos respiratórios, desde que, evidentemente, eu cumpra todo o rito de diagnóstico de morte encefálica: dois médicos examinando, com intervalo de tempo, em adulto, superior a 6 horas, e um exame subsidiário com o registro. Isso é importantíssimo. O registro é no sentido de uma eventual discussão, então você tem que provar que foi feito. Não pode ser uma coisa, assim, “fiz os exames e tal”. Tem que estar provado. Então, isso é importante.
Rosangela: O senhor falou que, na época, realmente o número de transplante era muito reduzido, mas hoje o número de transplantes é muito grande.
Dr. Manreza: Subiu muito. Passou a ser de uma importância fundamental. Sem esse diagnóstico seria humanamente impossível os transplantes.
Rosangela: Por que, na verdade, os transplantes acontecem a partir da morte encefálica?
Dr. Manreza: A partir da morte encefálica porque alguns órgãos são muito sensíveis, como o fígado, por exemplo, que é um dos transplantes que mais cresce em número. O fígado talvez seja um dos mais exigentes.
Rosangela: Para as famílias ainda é muito difícil encarar ou aceitar a morte encefálica?
Dr. Manreza: Lógico que o momento é muito dramático. Ninguém aceita a morte, mas a morte encefálica já é aceita. A gente percebe que mesmo em camadas mais baixas da população, pessoas sem muito acesso a informações, já são pessoas que aceitam a morte encefálica. Evidentemente, algumas vezes, o indivíduo não aceita, mas não aceita, assim, a morte daquele indivíduo. Geralmente são mortes traumáticas; são pessoas que estavam muito bem até meia hora atrás, sofrem um acidente... não são mortes por doença em que você acompanha e o fim é inevitável; doenças graves, doenças terminais. São pacientes, geralmente com morte súbita, morte violenta. Então, existe uma reação toda e, de repente, você vem e fala em transplante, de repente você fala em doação, então você pega essa família num momento muito crítico. Nós temos uma comissão no Hospital das Clínicas, eu faço parte desde 83, que é o Conselho de Transplante, e a todo mês nós recebemos as estatísticas do grupo. Existe um grupo, evidentemente, que faz essa procura, que faz o transporte, enfim, toda essa parte do doador e a gente percebe que, ano a ano, o número de recusas familiares vem diminuindo bastante, por uma facilidade maior de explicação e tudo mais.
Rosangela: As famílias podem autorizar o transplante assim que for diagnosticada a morte encefálica?
Dr. Manreza: Exatamente, ou a família ou um responsável. Existe toda uma legislação para isso e, inclusive, uma hierarquização. Não é raro, às vezes, situações até tragicômicas: o sujeito foi casado 30 anos, está vivendo há 5 anos com uma companheira, que ele até é apaixonado, tem até filhos dela, de repente, quem é o responsável? A ex-eposa. Ela diz que pode tirar tudo e a outra diz para não tirar nada. Então existe uma hierarquização de quem é que decide, quem não decide.... E existem situações, evidentemente, intransponíveis, em que acaba nem se conseguindo e se perde, às vezes, um doador. E a partir do momento em que é feito o diagnóstico de morte encefálica, existe uma equipe de abordagem, que aborda a família, dão todo o respaldo psicológico e, além de informar, é pedido isso: a doação.
Rosangela: O que a família tem que saber e ficar tranquila é que não vai mais existir aquela situação do “sininho”?
Dr. Manreza: O que eu posso garantir, e nesses anos todos que eu estou nisso, eu torno a insistir, é que eu não sou um transplantador, muito pelo contrário. Eu sempre brinco com os amigos transplantadores que se dependesse de mim não teria transplante. É lógico que eu quero uma mortalidade zero para os meus pacientes; é evidente que a minha luta é o contrário, mas diante do inevitável, nós colaboramos. Mas durante esses anos todos em que nós militamos nessa área, eu sempre militei na área de emergência. Não houve nenhum caso no mundo de engano, de erro, de se tirar órgão de um indivíduo que estivesse vivo. Quer dizer, porque o diagnóstico é muito seguro, pelo tempo de observação. Do ponto de vista científico, 10 minutos de observação em dois exames com morte encefálica seria o suficiente. Na realidade, se exige no adulto 6 horas; na criança com 7 dias de vida são 48 horas. Nas crianças de dois meses a 1 ano são 24 horas de observação; a coisa é bastante rígida. Dois médicos e o exame subsidiário que vai dar o respaldo da total inviabilidade.
* Dr. Luiz Alcides Manreza é neurocirurgião, professor doutor da Faculdade de Medicina da USP e participou do programa Papo de Mãe sobre Transplante exibido em 26.12.2010.

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